domingo, 25 de abril de 2010

.da amizade

"É uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde."
(Clarice Lispector)

Eu ouvi um “psiu” quando estava atravessando a rua. Estava tendo feira e eu não olhei porque feira é sempre uma gritaria e a gente não sabe quem está falando com quem. (Aliás, psiu é mesmo uma coisa desagradável porque a gente sabe que não deve olhar, mas dá uma vontade de saber quem é... aí você olha e vê aqueles risinhos cretinos ou comentários desnecessários, se você não olha, ouve alguém conhecido te chamando de metida que fingiu que não viu e não ouviu o fulano.) Continuei andando e ele não insistiu no psiu, percebi alguém me acompanhando e quando olhei era ele. Fiquei feliz em vê-lo, estava tão bonito, mais alto, mais forte, com o mesmo sorriso que eu gostava tanto de compartilhar. Conversamos um pouco e no instante em que eu ia perguntar do Nelson, ele foi mais rápido e me disse: “Pri, o Nelson morreu.”

Como assim, o Nelson morreu? Eu não sei se você já sentiu algo parecido, mas o mundo parou naquele momento. Parou e me trouxe de volta os momentos em que vivi com o Nelson e a única coisa que eu queria era que alguém me explicasse: como assim, o Nelson morreu? A resposta que recebi foi: Morreu atropelado por um tróleibus enquanto atravessava a rua prá fazer uma entrega do trabalho dele. Desceu do caminhão e foi levar a uma caixa, mas o tróleibus bateu nele de lado e jogou longe.

Tá bom, mas como? Eu queria que alguém me respondesse, não como foi a morte dele, mas como seria possível ele ter morrido. E daí que todo mundo vai morrer, que a morte é a única coisa certa nessa vida, que cada um tem a sua hora, enfim, dane-se. E eu ria. Porque eu tenho a maldita mania de rir quando eu não tenho resposta, quando não tenho absolutamente nada o que fazer.

O Nelson tinha 25 anos, moreno, aproximadamente 1,67m, era casado há três anos com a Simone e a filhinha deles vai completar um ano em Junho. Ele trabalhava muito, em várias coisas, terminou o ensino médio em 2002 e tinha planos de fazer uma faculdade, mas queria antes que a Simone concluísse seu curso de enfermagem. Ele não tinha planos prá ele. Tinha planos prá mãe dele, pros irmãos dele, pro primo dele, (esse que encontrei na feira e me deu a notícia) prá Simone e prá filha. Ele não precisava de muito prá viver. Provavelmente ele não levou nenhum arrependimento por algo que deixou de fazer. Porque o Nelson foi inteiro em cada coisa que ele fez e se doou inteiro prá cada pessoa com quem esteve. Parece até que ele sabia que não tinha muito tempo. É, não temos muito tempo.

Quando eu tinha 16 anos eu mudei de escola e comecei a estudar a noite. Lá eu conheci o Nelson. E depois eu percebi que praticamente todo mundo lá também o conhecia! Naquela época só nós dois trabalhávamos na nossa sala. Eu trabalhava em uma oficina de funilaria e pintura, ele trabalhava na feira e em uma loja de calçados e por vezes chegávamos atrasados e parávamos prá comer na padaria da esquina até a hora da segunda aula. Ele andava com aquele jeitão despojado, falando alto e falando muuuuito, tanto que às vezes até irritava, mas quando faltava fazia tanta falta! No começo a gente pegava o mesmo ônibus, depois ele comprou uma Belina e passava em casa prá me buscar, junto com um amigo e mais dois primos que estavam estudando na mesma escola também. Isso nos causou algum atraso porque às vezes o possante quebrava no meio do caminho. Geralmente ele me dava carona na volta, quando ele não tinha que levar os meninos em casa, porque bebiam até cair. Ele não bebia dessa maneira porque afinal tinha que trabalhar no dia seguinte e não precisava provar nada prá ninguém.

Quando eu tinha 15 anos o meu pai foi embora e desde que eu percebi que ele não voltaria, eu decidi que o melhor negócio da vida seria não criar vínculos, porque você já deve saber disso, depois de criado um vínculo dói demais se ele se quebra, ou acaba, ou vai embora, ou qualquer coisa do tipo. E eu decidi que se eu já estava atrapalhada demais prá conviver com um buraco no meu coração eu não iria suportar ter mais nenhum. Mas aí eu conheci o Nelson, e ele não pediu licença, ele não quis saber se eu estava mais é querendo que todos os seres humanos ficassem bem longe de mim. Ele simplesmente invadiu a minha vida.

Hoje eu respondo SIM à pergunta: “Existe amizade entre homem e mulher?” SIM, é claro que existe! Se você não acredita você devia ter conhecido o meu amigo Nelson. Pena que eu não vou poder mais te levar prá tomar um café com ele. Ah eu não posso te convidar prá conhecê-lo, mas você ia adorar vê-lo sorrir. Você deve conhecer alguém que parece que só atrai coisa boa, com certeza você conhece alguém que te faz muito bem. Mas talvez você não tenha conhecido o Nelson, e minha nossa, como eu sou feliz por ter tido esse privilégio.

Nós não sabemos mesmo quanto tempo vamos ter prá gastar, prá aproveitar, prá viver com cada pessoa. Eu ainda não acredito que eu já não tenho mais nenhum tempo com o Nelson, nem direito a um, só mais um telefonema, um torpedo que seja. Se eu tivesse direito a pelo menos 140 caracteres prá ele ler eu mandaria: “Seu FDP aposto que passou correndo feito louco na frente do tróleibus. Vai com Deus. Te amo.”

Por acaso vi hoje uma cena de uma novela nova em que um menino que morreu se encontrava com sua mãe que já tinha morrido antes. Se eu acreditasse nessa possibilidade, talvez ficasse mais alegre pela chance de um novo abraço. Mas como acredito que só nos encontramos aqui, fico menos triste por saber que não ficou nada a ser dito, porque ele me ensinou na prática que os sentimentos só servem se vividos no presente e que as pessoas que são especiais prá você devem saber disso. Ele soube o quanto era especial prá mim, o quanto eu o amava, o quanto eu gostava daquele sorriso sem vergonha, o quanto eu me sentia segura com ele.

Ele me mostrou que os vínculos não tem garantia, mas os bons ainda valem a pena e duram para sempre, independente de onde estivermos. E além do mais o nosso coração é vazio, um grande buraco que precisamos preencher com pessoas assim, durante o tempo que nos for permitido.

Agora que você já sabe o quão bom foi compartilhar a minha vida com esse menino, talvez você saiba me dizer, como assim o Nelson morreu? Se você souber me diga, mas se por acaso você não souber, ria comigo. A gente não sabe nada mesmo.

Bom final de domingo.

Priscila

sexta-feira, 16 de abril de 2010

.da viagem...

Seja você quem for, seja qual for a posição social que você tenha na vida,
a mais alta ou a mais baixa, tenha sempre como meta muita força, muita determinação
e sempre faça tudo com muito amor e com muita fé em Deus, que um dia você chega lá.
De alguma maneira você chega lá.
(Ayrton Senna)


E nesse dia eu acordei bem disposta. Sabia que a viagem seria longa mas não tinha preparado a bagagem. Algumas pessoas tentaram me alertar sobre coisas que eu não poderia deixar de colocar na mala. Me dei conta que eu ainda não tinha uma mala. Eu sempre tive problemas em adiantar as coisas, aquela terrível mania que dizem ser um mal do brasileiro de deixar as coisas prá última hora. Não era um mal de brasileiro. Era um mal meu, mais um dos vários defeitos que eu não conseguia me livrar. Algumas pessoas queriam que eu deixasse prá partir outro dia, ou fosse prá outro lugar. Teve gente me oferecendo a passagem de graça prá eu pegar outro ônibus com garantia de viagem tranquila e chegada certa. Mas teve gente também que pagou minha passagem prá viagem mais difícil, com a certeza de viagem complicada e sem garantia de chegada. Eu estava mais interessada nessa. Decidi levar a pouca bagagem que tinha numa sacola e compraria uma maior, caso encontrasse pelo caminho.
Vesti a minha melhor roupa, arrumei lentamente o cabelo, usei o meu melhor perfume, fiz uma prece.
Parti.
O ponto do ônibus era perto de casa, mas naquele dia foi demorado chegar até lá e quando finalmente cheguei, o ônibus não passava. Eu e mais tantas pessoas aguardávamos nossos ônibus e partilhávamos sem nos dar conta, nossas vidas, nossos caminhos. Ali os sentimentos se misturavam e renovavam. Ansiedade, raiva, mal humor, alívio. Vem vindo o meu.
Cada despedida um encontro.
Entro no ônibus, entrego a passagem, me acomodo. Reacende em mim toda a disposição e alegria com que despertei pela manhã. Fico encantada e grata por estar finalmente dentro do ônibus que olhei de longe pude ler com dificuldade pela miopia as letras que formavam: OPORTUNIDADE. Era a oportunidade que me levaria ao sonho, ao sucesso.
Essa chama foi acesa até chegar em um ponto em que percebi que o caminho estava mais longo do que eu planejei. Eu saí no horário, eu entrei no ônibus certo e bem empolgada pra iniciar meu caminho e chegar logo no meu destino, mas não sei o que aconteceu na cidade, tem alguma coisa impedindo que o ônibus siga num ritmo normal ou acelerado. É o que chamam de um trânsito infernal, um caos, mas o estranho é que tem alguns veículos que conseguem passar. Não deve ser enchente porque o ônibus passaria tranquilamente por onde outros carros estavam passando. Por mais que eu tentasse, eu olhava pela janela e não encontrava saída, pensei em descer e entrar em um ônibus que seguia pra outro caminho, mas aquele era o ônibus que ia pra onde eu gostaria de estar em breve.
Algumas pessoas já haviam descido, não vi pra onde elas foram, parece que algumas seguiram pra outro destino, outras retornaram, outras conseguiram pegar carona com pessoas que estavam conseguindo atravessar o trânsito.
Sabem, se passaram muitas horas e essa situação não mudou. O ônibus fora muito bem até aquele ponto, mas agora semplesmente não se movia, ou se movia lentamente. Por vezes eu me peguei pensando que não adiantaria continuar ali, que o ônibus não andaria mais, que eu nunca chegaria. Me desesperava saber que aquele ônibus que eu esperei tanto no ponto, estava ali parado por tanto tempo e que se ele demorasse mais eu jamais desceria aonde teria que pegar ainda um outro ônibus. E me lembrava que esse outro ônibus trazia mais dificuldades. Eu nunca entrei nele antes, não naquele lugar, eu só sabia que vinha escrito “EXPERIÊNCIA”. Disseram-me que demorava, mas que era preciso curtir a viagem, que seria inesquecível e me daria passagens grátis em vários outros ônibus bem mais ágeis e confortáveis.
Mas esqueceram de me dizer que o ônibus que me levaria até lá era tão complicado. Ou até tentaram me avisar e eu com a minha teimosia (está aí mais um daqueles defeitos que não me deixam) achei melhor não levar em consideração.
Quando o trânsito afinal melhorou, ouvimos um barulho e uma freada lenta. Estávamos parados de novo, olhei pela janela e vi o motorista com aquela cara que dizia “Puta merda, mais essa agora!” Sim, o pneu estava furado, e não adiantava reclamar, tínhamos que esperar a troca.
Era estranho que às vezes, mesmo parada, eu sentia a alegria de já estar dentro do ônibus e tinha acesa a chama da esperança que me dizia que não importava o quanto demorasse, eu chegaria lá. Nem que eu precisasse empurrar o ônibus, ajudar na troca do pneu, me forçar a ficar de bom humor conversando com o motorista, fingindo interesse pra ele não dormir e me levar de boa vontade. Nem que eu tivesse que me desesperar, chorar e gritar, mas eu acordaria um dia e aquele trânsito todo teria aliviado, e eu estaria lá.
Mas o caminho não estava sendo fácil, não estava agradável, e a minha falta de paciência não me ajudava. (Já é o terceiro defeito que você sabe a meu respeito).
Eu sigo no ônibus.
Tem momentos em que o rádio funciona e tocam músicas tão legais! E pra ajudar, param carros ao lado com pessoas tão interessadas em ajudar, em seguir juntos pelo caminho, em passar o tempo com conversas agradáveis. Mas tem momentos em que se olha ao lado e já não tem ninguém, algumas pessoas seguiram, outras voltaram... O rádio não funciona, a luz apaga sozinha, o motorista e o cobrador dormem sabendo que ainda vai demorar. E eu me encontro sozinha, não vejo mais ninguém no ônibus além de mim e os dois funcionários que dormem. Não sei quem fechou, mas não tem nenhuma janela aberta. Lá fora está escuro e por mais que eu force os olhos eu não vejo nada lá fora. Não ouço um ruído sequer. Pior que isso são os momentos em que ouço gargalhadas como se alguém se divertisse pelo atraso da minha viagem.
Assim como eu nesse ônibus, tudo isso é passageiro. A música volta a tocar, outras pessoas sobem no ônibus, eu volto a sorrir mesmo sem saber o motivo, fica tudo claro lá fora e as janelas estão abertas agora.
Nesse momento eu ainda não sei quando vou chegar, decido aproveitar a viagem, aproveitar essas pessoas que não saíram de perto de mim mesmo quando eu não as via. Elas não podiam fazer o trânsito andar, mas elas estavam ali me impedindo de desistir, estavam na porta prá não permitir que eu voltasse prá casa desistindo do meu caminho.
Eu agora faço o possível pra não deixar a música parar, abro as janelas quando as encontro fechadas e no momento em que chega a escuridão, eu fecho meus olhos por um instante e só desejo que essa escuridão esteja do lado de fora, mas jamais dentro de mim. E quando mesmo contra minha vontade, essa escuridão me invade me trazendo o desânimo e o cansaço, eu me permito fechar as janelas, deixar as lágrimas e a revolta saírem, pra receber a claridade o mais rápido possível.
Eu nunca sei quando a luz vai superar a escuridão, mas eu não me permito que a escuridão tome posse de mim por muito tempo. Por mais fraca que seja, há uma luz que não se apaga e que volta a brilhar cada vez mais forte.
O que eu sei é que nada nesse trajeto é a toa e começou a fazer sentido quando eu parei de pensar que só valeria a pena quando eu chegasse no próximo ponto.
Você deve estar se perguntando afinal se eu já cheguei, se está próximo, se o trânsito melhorou... Eu te digo que eu não sei te informar quase nada e ninguém ao meu redor sabe dizer. O que eu te digo e você pode acreditar é que eu vou chegar, mas que até lá eu vou ainda ter que aprender algumas lições úteis e fundamentais pra minha vida.
Vou me transformando à medida que recebo algumas rosas e levo algumas pedradas.
Devo lhe dizer que uma mala nesse caso é de fato desnecessária. Aprendi que eu tenho que chegar de mãos vazias, não posso levar nem as pedras nem as rosas. Tenho que deixá-las pra traz, mas faço questão de me apegar ao perfume e à beleza das rosas. As marcas das pedras vão ficando em mim talvez pra eu me lembrar que eu tenho muitos defeitos que vão me atrapalhar de vez em quando mas até eu terei que saber respeitá-los, ao mesmo tempo que me tornam mais humana, mais igual a qualquer outra pessoa. Servem também prá eu me recordar que dói e assim que devo evitar de apedrejar outras pessoas, porque todas elas estão enfrentando dias de viagem prá chegar seja lá aonde for.
Somos todos tão frágeis, tão sonhadores... Não importa a velocidade que nosso ônibus está andando, é preciso aproveitar por onde estamos passando, é preciso estar atento ao caminho e não se esquecer que mais cedo ou mais tarde, haveremos de chegar e não sabemos o que nos espera .
É preciso aproveitar o caminho.
É preciso estar. Agora.
Eu sigo viagem, você adoraria ver o tanto de gente boa que tenho encontrado e o tanto de gente que não me abandonou desde a minha partida.
Você vai ficar mais feliz ainda quando eu te contar que eu cheguei.
Agora tenho que seguir.
Boa viagem prá você. Prá nós.
Priscila.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

.do que não envelhece

"a última coisa que envelhece é o coração" (Rock Balboa)

A vida é mesmo feita de momentos, experiências, encontros, relacionamentos.
Muitas vezes nos encontramos buscando algo novo, pode ser um emprego novo, um carro novo, uma casa nova, um visual novo, um namorado novo, roupas novas, enfim... Tem coisas que tem os dias contados em nossa vida, chegam nos enchendo de entusiasmo até que perdem o encanto. A roupa sai de moda, o sapato fica gsto e sem graça, o emprego de tantos anos fica cansativo e sem grandes oportunidades de promoção, a casa fica pequena, enfim, com o passar do tempo as coisas se desgastam e à medida que a gente muda, as coisas também tem que mudar.
O que não passa, o que não envelhece, o que não acaba, são as marcas que ficam em cada um de nós deixadas pelos nossos relacionamentos. E eu não falo aqui de relacionamento amoroso, paixão, romantismo, não! Eu falo de todo e qualquer contato humano, seja ela regado de amor, ódio, rancor ou perdão. Quando entramos em contato com outra pessoa, seja ela quem for e seja esse contato qual for, já não somos os mesmos.
A reflexão que faço é, qual a marca que eu tenho deixado nas pessoas? Mesmo sem querer, sem pretensão nenhuma, o que uma pessoa sente ao me ver, ao me ouvir, ao me sentir?
Que não sejamos tão ingênuos, nem tão indiferentes a ponto de achar que não fazemos diferença, que só tocamos as pessoas quando queremos, que não temos responsabilidade nenhuma com o outro.
Quando uma pessoa passa pela minha vida, ela é minha responsabilidade, da mesma forma que sou dela.
Este encontro, de responsabilidade mútua, pode nos transformar, desde que ambas as partes não queiram fazer desse encontro uma disputa prá ver quem tem mais títulos, quem sabe se expressar melhor, quem tem mais fé ou mais dores. Que este encontro seja apenas e simplismente o que realmente é: humano.
É isso que somos e é isso que os relacionamentos devem nos fazer sentir... Cada vez mais humanos.